A voz e o verso Foi nas mãos de um velho jangadeiro que uma vez eu vi Uma agulha dançando, uma linha virando uma rede Reatando um a um os espaços vazios da tarde Pra peneirar um cardume nas ondas do mar Eu não sei se costume ou destino me talhou assim Pra notar no de sempre uma súbita luz passageira E, no que há de mais novo, rever toda a antiguidade Sei que me invade uma beira de espanto no olhar E por isso me fio em tecer o escrever Me seguro em balanço e lanço Sobre escrita nova escrita Na ventura e na desdita Sem achar descanso Vai no verso uma linha que pode bordar Um passado, um futuro, um furo Mas o verso sem a voz É a linha sem os nós É a fera entre muros A palavra que vem chega antes e além Quando a voz de uma pessoa soa Mas cantar sem palavras É uma rede sem travas É um vulto na garoa Se há uma ponte que leva da mente até ao coração Eu prefiro a jangada que passa dançando entre as ondas E mais de um pescador eu vi caminhar sobre as águas Feito quem desce da rede pra ir ao jardim Velha caligrafia a nanquim figura igarapés No desenho da letra vai coisa que a letra não diz E a canção quando passa enredando na letra uma voz Leva o não-dito e o dito nas ondas sem fim